Qualificação e sucessão rural marcam história de vinícolas familiares em Bento Gonçalves

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O provérbio In vino veritas – A verdade está no vinho – ganha outras dimensões para as vinícolas familiares incluídas no Programa Estadual da Agricultura Familiar (Peaf), da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SEAPDR). Para elas, Vinum vita est – Vinho é vida. Pois é na tradição transgeracional de elaborar seus próprios vinhos que essas famílias buscam, hoje, sustento, realização profissional e meios de garantir a sucessão em suas propriedades.

Uma vinícola familiar incluída no Peaf tem dois caminhos a seguir quanto ao registro do vinho junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa): ou opta pelo registro em CNPJ, aderindo ao Simples Nacional, ou pelo CPF, por meio da Lei de Vinhos Coloniais. A escolha por um ou outro caminho determina, além de diferenças no recolhimento de impostos, limites de produção e de possíveis pontos de venda. Mas os dois caminhos se interseccionam no controle total da produção: para estar no Peaf, é necessário que as uvas sejam totalmente cultivadas na propriedade familiar.

Conheça duas vinícolas de Bento Gonçalves que seguiram caminhos diferentes para o registro, mas que compartilham entre si a busca da qualificação técnica como forma de preservar tradições familiares e garantir a sucessão rural.

Cinco gerações depois, de armazém a vinícola

Anderson Buffon representa a quinta geração de sua família a trabalhar com uva e vinho, numa tradição que remonta à chegada de seu ancestral Giaccomo Buffon à colônia Dona Isabel, futura Bento Gonçalves, no fim do século XIX. A vinícola da família, instalada desde então no distrito de Faria Lemos, próxima à Rota Cantinas Históricas, conta com parreirais centenários ainda em produção. “Foram plantados pelo meu bisavô e fazemos vinhos a partir de suas uvas até hoje”, garante Anderson. O que começou com um hectare de videiras plantadas em frente à casa da família, hoje ocupa uma área de 10 hectares cultivados com as mais diversas variedades de uvas. “Meu pai gosta de plantar dois, três pés de cada tipo, daí temos quase uma centena de variedades plantadas, para vinho e de mesa. Ele gosta de colecionar”, se diverte.

Como muitos viticultores da região, a família Buffon inicialmente vendia suas uvas a outras vinícolas ou cooperativas, até a formação da Rota Cantinas Históricas, em 2010. “Participamos do roteiro como armazém, com produtos da região. A gente começou a trabalhar com todas as vinícolas daqui, e deu vontade de fazer o nosso próprio vinho”, conta Anderson. O interesse levou Anderson e sua irmã a buscarem qualificação na área de Viticultura e Enologia – ele vai finalizar o curso superior, e ela está no curso técnico do Instituto Federal. “E aumentou ainda mais a vontade, né. Você está lá, produz a uva, trabalha com o vinho dos outros e dá aquela vontade de melhorar o que está fazendo”.

A partir de 2019, a família Buffon resolveu levar adiante o projeto de ter sua própria vinícola: sob orientação do escritório local da Emater/RS-Ascar, reformaram o armazém para que pudesse se adequar às exigências sanitárias e ambientais necessárias para obter o registro no Ministério. Também alteraram o contrato social do CNPJ, de armazém para vinícola, e solicitaram a inclusão no Peaf. O registro no Ministério da Agricultura veio em setembro de 2020. A produção da vinícola está em torno de 30 mil litros anuais, e a venda é focada no consumidor final e na parceria com adegas especializadas, que comercializam o vinho pelo Brasil.

“Não buscamos grandes redes porque eu acho que nosso principal objetivo é elaborar vinhos finos em lotes limitados e buscar um público específico, porque tem toda uma história por trás. Tu pega a tua uva, que tu produziu o ano inteiro, cuidou o ano inteiro e traz pra cá, para a família mesmo elaborar o vinho, até chegar na garrafa. Eu gosto de valorizar todo esse processo artesanal. A gente poderia ser uma vinícola normal? Sim, mas daí seria como os outros. O meu vinho é elaborado por toda a família, desde a uva até o produto final”, destaca.

Anderson segue com a tradição dos vinhos de mesa produzidos com uvas clássicas como Bordô e Isabel – inclusive, é a variedade dos parreirais plantados pelo nono Buffon há um século e que continuam em produção. Mas o futuro enólogo se entusiasma com as possibilidades que encontra na produção de vinhos e espumantes finos, com variedades históricas. “Queremos manter uma agroindústria familiar e agregar valor ao estilo do vinho, mostrar que o vinho familiar não é só o garrafão. A gente pode elaborar vinhos finos com ótima qualidade”, conclui.

Uma semente para o futuro

O encontro entre campo e cidade pode simbolizar a formação do casal Juliano e Daniela Zottis, juntos há 10 anos. Ele, nascido e criado em propriedade rural, sempre viveu para o cultivo de uvas. Ela, enóloga, natural de Garibaldi, ajudava o pai a fazer vinho em casa. Casados há sete anos, resolveram fazer do porão da própria residência no Vale dos Vinhedos a plataforma de lançamento para a construção de um sonho em comum. “A gente sempre quis abrir uma vinícola. Há cinco anos vendemos aqui uvas de mesa, é um ponto que as pessoas já conhecem por isso. Aos pouquinhos a gente foi elaborando vinho, e aí surgiu a oportunidade, junto com a Emater e a SEAPDR, de a gente registrar como uma agroindústria”, explica Daniela.

Sob orientação da Emater/RS-Ascar, a Casa Zottis fez as reformas necessárias para atender aos requisitos sanitários e ambientais de uma vinícola, se inscreveu no Peaf e obteve o registro oficial do Mapa como vinícola em 2020, por meio da Lei dos Vinhos Coloniais, que permite o registro pelo CPF do proprietário do estabelecimento. Este tipo de registro traz alguns condicionantes, como o limite de produção de 20 mil litros anuais de vinho e a restrição de venda apenas na propriedade ou em feiras de agricultura familiar. “É um dos diferenciais, quando falamos para o cliente: ‘só encontra aqui’. Às vezes esse ‘só pode ser vendido aqui’ acaba nos ajudando na venda”, conta Daniela.

Como o registro foi conquistado durante a pandemia, ainda não houve oportunidade de a Casa Zottis participar de feiras. “A nossa renda principal ainda é a uva de mesa, então a pandemia não foi impactante. Conseguimos inaugurar a vinícola em junho deste ano e estamos, aos poucos, vendendo nossos vinhos e espumantes para clientes antigos, que compram nossas uvas de mesa. Hoje atendemos todas as quintas, sextas e sábados, porque tenho um outro emprego, mas futuramente vou passar a me dedicar em tempo integral e vamos abrir de terça a domingo”, explica Daniela.

A propriedade conquistou uma clientela fiel de moradores da região e vem chamando a atenção de turistas que visitam o Vale dos Vinhedos. Para Daniela, o que atrai o público é justamente o ambiente familiar que a casa proporciona. “A gente gosta de atender, conversar, um dos diferenciais que o pessoal fala bastante é que meus sogros gostam de conversar, então o pessoal se sente acolhido. Nosso objetivo aqui é manter a tradição do cultivo da uva e a elaboração do vinho no porão de casa – por isso é Casa Zottis, porque é no porão da nossa casa que nós temos esta estrutura”, detalha a enóloga.

A vinícola trabalha com vinhos de mesa, mas também vem investindo na produção de vinhos e espumantes finos, com variedades incomuns como moscato de Hamburgo e Alicante Bouschet. “O moscato de Hamburgo é uma variedade que a gente aposta muito, era a preferida do falecido avô do Juliano. É um vinho rosé bem leve, aromático, delicioso”, explica Daniela. A propriedade conta com 12,5 hectares de área cultivada com 15 variedades de uva, para vinho e de mesa.

Embora trabalhem em aspectos diferentes da produção do vinho, o casal busca qualificações complementares, como um curso de sommelier que fizeram em 2014. E que, para Juliano, foi um divisor de águas. “Eu inscrevi o Juliano escondida, porque ele é muito tímido, não sabia o que dizer quando fosse se apresentar à turma. Eu falei: diz que você é um viticultor do Vale dos Vinhedos”.

Juliano continua a história: “Daí eu disse isso mesmo, e todo mundo se interessou por saber como eu fazia, como eu cultivava as uvas. Foi um momento importante, que virou uma chave para mim, porque passei a sentir orgulho de ser agricultor. Quando criança, na escola, ser chamado de colono era motivo de vergonha. Hoje sinto muito orgulho das minhas origens”, frisa.

O herdeiro da tradição de duas famílias que se uniram pelo amor à uva e ao vinho é Leonardo, o filho de cinco anos do casal. Logo ao lado, no parreiral da família, o menino brinca despreocupado com o gato de estimação Merlot. “A gente recebeu toda essa formação de nossos pais e avós, então a ideia é a gente passar adiante, para ele”, conclui Daniela.

Texto: Elaine Pinto
Fotos: Fernando Dias

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